Mayara Cardoso, de 22 anos, inscreveu-se no Sisu em uma das modalidades de cotas. Ela estava pleiteando uma vaga no ensino superior desde 2018. Aprovada em medicina na UFRJ grava a própria reação ao ver o resultado do Sisu
Em Belo Horizonte, no quarto de Mayara Cardoso, de 22 anos, uma frase de seu filme favorito, “Alice no País das Maravilhas”, está escrita na parede:
“A única forma de alcançar o impossível é acreditar que é possível”.
É uma citação escolhida por representar a perseverança. A jovem, recém-aprovada em medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tentava entrar no ensino superior desde 2018.
“Sou preta, pobre e vinda de escola pública. As pessoas me perguntam por que escolhi a medicina, e eu respondo: por que não escolher a medicina?”, diz.
“Por muito tempo, gente como eu não teve essa possibilidade de querer coisas boas para si. Essa vitória é uma conquista do meu povo, que venceu a escravidão.”
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Mayara foi uma das aprovadas (veja vídeo acima) no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) 2022, na modalidade de cotas para autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que sejam ex-alunos da rede pública e que tenham renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo.
“A política de cotas é uma forma de compensar o racismo estrutural que afasta pessoas como eu desse curso, majoritariamente branco. É por isso que quero ser uma luz para outras meninas pretas –desejo que elas terminem o ensino médio, olhem para mim e falem: ‘vou ser aquela médica’”, afirma Mayara.
Vídeo da reação
Depois de três anos estudando para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – lidando com ansiedade, problemas financeiros, mortes na família e medos na pandemia –, finalmente parecia ter chegado a hora de a jovem ver seu nome na lista de aprovados da UFRJ. A última nota de corte divulgada no Sisu 2022 indicava que as chances de “passar” eram significativas.
“Eu só ia acreditar quando saísse o resultado. Por isso, quis filmar minha reação”, conta. “Foi aquela festa: é um sonho se realizando.”
No vídeo-selfie (no início da reportagem), Mayara aparece ao lado da irmã, Maria Clara, e da cachorrinha da família, Blue. Na legenda, o grito de alívio: “Mãe, sou medicina na UFRJ!”.
É claro que o post viralizou nas redes sociais.
Da privação total de redes sociais ao modo mais ‘relax’ de estudo
Mayara foi aprovada em medicina na UFRJ
Arquivo pessoal
Mayara tinha uma imagem do candidato que costuma ser aprovado em medicina: aquele jovem que passa mais de 7 horas por dia estudando sem parar.
E foi isso que ela tentou reproduzir em 2018, no seu primeiro ano de estudos para o Enem. A família conseguiu se organizar financeiramente para pagar um cursinho pré-vestibular barato, que prestasse um apoio pedagógico à aluna.
“Eu me esforcei muito: parei de trabalhar e larguei as redes sociais. Só falava com os meus amigos por e-mail. Foi extremamente pesado. No fim do ano, estava completamente exausta, só chorava”, relata.
No segundo dia do Enem 2018, a avó de Mayara faleceu. “Fui fazer o exame desolada. Tirei uma nota baixíssima, mas aprendi que não adianta querer ter controle da realidade.”
No ano seguinte, mais uma tentativa – dessa vez, estudando em casa, para os “pais não se apertarem financeiramente de novo”.
“Tentei fazer mais pausas e praticar exercícios físicos. Mas, de novo, no fim do ano, comecei a ter crises de ansiedade e a ficar muito depressiva. Decidi que, em 2020, continuaria estudando, mas com acompanhamento psicológico.”
O que ela não esperava, obviamente, era enfrentar uma pandemia.
“Passei uma semana deitada na cama. Não via mais objetivo em acordar e estudar, enquanto as pessoas estavam morrendo”, afirma.
Mayara encontrou o “tom” em 2021: conciliou os estudos com terapia, exercícios físicos e boas noites de sono.
“Pela primeira vez, fui fazer a prova sem chorar, sem estar ansiosa. E o resultado valeu a pena. Tirei 980 na redação”, relata.
Mudança para o Rio de Janeiro
O desafio de Mayara agora é levantar fundos para se mudar de Belo Horizonte para Macaé, perto do campus da UFRJ.
Ela já lançou uma vaquinha on-line para pagar uma passagem de ônibus ou de avião, e decidiu que pedirá auxílio estudantil na instituição de ensino.
“Meus pais não estão acreditando ainda. Eles têm uma filha [estudando] na federal!”
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